Camila Castro, 2013.
O que é arte? O que é
poesia? O que é loucura? O que saúde mental? Essas são questões inquietantes
que seguem em minha mente, de forma a somar-se como complementos uns dos outros.
A saúde mental como bem-estar emocional do indivíduo, a loucura como fuga do
imposto e a arte e a poesia como expressão de ser e de sentimentos se mostram
presentes de formas tão subentendidas que é difícil colocar em palavras essa
rica e imprescindível somatória. Concordando com Carlos Alberto Coelho apud.
Masini (2004) em “"Poesia, um idioma da percepção", não vejo a poesia
como algo a ser aprendido, ou como um instrumento a ser usado, a poesia surge
para expressar sentimentos, desejos, angústias, alegrias, tristezas...
mostrando o interior, muitas vezes, não muito exposto de seus escritores, ou
até mesmo a fantasia outrora escondida da sociedade.
Fernando Pessoa, ao
descrever o poeta em “Autopsicografia”, traz um poeta que sente, sente o que é
seu e o que não é também, sente a dor que tem e chega a sentir a dor que finge
ter. Ele transforma em palavras, versos e rimas o poder da poesia, um poder que
transpõe fantasia em sentir, que torna o sentimento do outro (o poeta) em seu
próprio sentimento, trazendo identificação e expressão:
Autopsicografia –
Fernando Pessoa
O poeta é um fingidor.
Finge tão
completamente
Que chega a
fingir que é dor
A dor que
deveras sente.
E os que lêem o
que escreve,
Na dor lida
sentem bem,
Não as duas que
ele teve,
Mas só a que
eles não têm.
E assim nas
calhas de roda
Gira, a entreter
a razão,
Esse comboio de
corda
Que se chama
coração.
A Organização Mundial
da Saúde, ao falar sobre Saúde Mental, a define como não apenas a ausência de
transtorno mental, mas como um estado de bem-estar, no qual o indivíduo é
consciente de suas próprias capacidades, pode lidar com tensões normais da
vida, pode trabalhar de forma produtiva e é capaz de contribuir com sua
sociedade. Refletindo, então, sob essa definição, penso que “Saúde Mental”
exige quase que uma perfeição do indivíduo, ele tem que conseguir lidar com os
problemas da vida sem sentir, deve ser produtivo, ter consciência do que faz,
sem agir impulsivamente ou causar transtornos a outras pessoas. Quem é assim?
Quem vive assim? Devo pensar, portanto, que a pessoa que foge, mesmo que por um
instante, desse estado de bem-estar é louca? Afinal, o que é loucura? Quem a
impõe? Os ditos sociais segregam as pessoas entre loucos e sãos, feios e bonitos,
inteligentes e burros, e tantos outros antônimos que seguem procurando definir e
encaixar cada qual em seu lugar.
Esta Espécie de Loucura
- Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Esta espécie de
loucura
Que é pouco
chamar talento
E que brilha em
mim, na escura
Confusão do
pensamento,
Não me traz
felicidade;
Porque, enfim,
sempre haverá
Sol ou sombra na
cidade.
Mas em mim não
sei o que há
Mas, por que, então,
definir Saúde Mental e refletir sobre a loucura, quando iniciamos uma discussão
sobre poesia? Quero, com isso, fazer uma viagem na poesia enquanto arte e forma
de expressão de sentimentos, e, portanto, componente intrínseco de Saúde
Mental. Lima (2007), ao fazer uma perspectiva histórica acerca da relação entre
a loucura e a arte, cita Foucault (1995) e relata que, “em hospitais no mundo
árabe – criados por volta do século XII e destinados exclusivamente aos loucos
–, a música, a dança, os espetáculos e as narrativas de contos fabulosos eram
utilizados como forma de intervenção e de cura da alma”. Ainda nesse passeio
histórico sobre o tema, ela apresenta o que Foucault (1995) denominou como experiência
trágica da loucura, onde, ao longo do século XVII, essa “cura da alma” deu
lugar a uma “consciência crítica da loucura”. Esta, então, passou para um
submundo, associado à incapacidade no trabalho, impossibilidade de integração
social, ou seja, passou a ser doença mental. Silenciando, assim, a loucura.
Foi nesse processo de
silenciar a loucura que, segundo Foucault (1995) apud. Lima (2007), ela pôde,
assim como a poesia, criar a sua própria linguagem. “O reaparecimento da
loucura no domínio da linguagem precedeu qualquer interesse da
clínica pela arte, seja como aliada para
a construção de uma teoria do funcionamento psíquico, seja como instrumento de
procedimentos terapêuticos” (LIMA, 2007). Ainda nessa exploração histórica, a
mesma autora apresenta essa relação construída entre a loucura e a arte:
Nesse alargamento
da sensibilidade, a prática artística dirigiu-se para a exploração daquilo que
lhe era exterior, visando a pesquisa de novas formas de fazer arte e buscando
operar no limite da linguagem artística e do sistema da arte. Entre esses
campos de exterioridade, a arte explorou sua vizinhança com a loucura, tanto no
processo de criação do artista quanto no interesse por aquilo que alguns
sujeitos, enredados nas malhas de instituições asilares, produziam. Assim, as
relações entre arte, clínica e loucura passaram a se esboçar a partir da
confluência entre dois deslocamentos: de um lado, buscando conquistar uma
linguagem, alguns habitantes do mundo da loucura faziam um movimento quase
imperceptível – já que oriundo de um espaço de exclusão e silêncio – em direção
à criação artística; de outro, alguns artistas, ao se debruçarem sobre a alma
humana e suas vicissitudes e buscando ampliar os limites de sua linguagem,
voltavam seu olhar para o mundo da loucura.
Refletindo, assim, na
arte, e aqui especificamente a poesia, como forma de dar voz à loucura, trago
Liberato & Dimenstein (2013) ao utilizar “a arte como estratégia de
potencialização de novos modos de existência e de lutas coletivas”, lidar com
ela, como “vetor de subjetivação, dispositivo desinstitucionalizante e
estratégia de resistência, buscando a criação de agenciamentos que desconstruam
estigmas e possibilitem a invenção de territórios existenciais singulares e de
outros caminhos em direção à alteridade”.
No uso da poesia como
ferramenta de expressão é que sua relação com a saúde mental se efetiva, ao
colocar em estrofes, versos e rimas sentimentos, fugas e existência. Trago,
para tanto, alguns exemplos: o primeiro é o clássico Machado de Assis, que durante
o século XIX tomou a loucura como tema. Este criava personagens que fugiam da
normalidade, procurando explorar singularidades de expressões do dia-a-dia,
configurando uma sensibilidade para tratar das questões da loucura. Não me
aprofundarei aqui nas obras desse autor, deixando como missão a pesquisa e
leitura das mesmas, deixo como dica o conto “O alienista”, cujo tema central é a
discussão que gira “em torno da norma, de sua existência, de sua busca, da
delimitação entre loucura e razão” (LIMA, 2007).
“[...] razão é o
perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia; insânia e só
insânia [...]”
"[...] A loucura -
ele descobre, ao despedir-se de D. Evarista, que viaja ao Rio - objeto de meus
estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar
que é um continente [...]"
O Alienista –
Machado de Assis.
Vemos, nesse primeiro
trecho, uma definição muito precisa de loucura, onde tudo o que foge da
normalidade, do equilíbrio é considerado insanidade pelo Alienista.
Conseqüência dessa ampla denominação do que é a loucura foi o fato de que, no
conto, quase toda a cidade foi levada à Casa Verde, lugar onde os doidos eram
presos. Ampliando, assim, a loucura de ilha para continente.
Qorpo Santo (José
Joaquim de Campos Leão) também é figura protagonista na relação discutida ao
longo deste texto. Ele, considerado louco à sua época, usou do período de
internação para uma produção literária febril e intensa. Elizabeth Lima (2007)
o define como “um doido que havia escrito poesias de doido que ninguém leu”. “O
que interessava para ele não era a suposta qualidade do trabalho, mas o fato
mesmo de escrever”. “Conheceu o primeiro manicômio brasileiro bem como a
experiência do estigma de louco e que, desse lugar, produziu uma obra que
permaneceu por cem anos esquecida” – “Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade
Alguém do povo – Qorpo Santo, in:
Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade
Eu não sei quem foi do povo.
--- Se arrojou a me ---afirmar;
Suas obras - - não tem erros!
Os que lhe --- parecem ser seus,
--- São satiras as leis do
Imperio!
Os verdadeiros lypographicos,
--- Satiras são executores!
Sua modestia pois --- eu lôvo!
|
Que despropósito – Qorpo Santo
Façam-me barão com grandeza,
Dêem-me um conto para despesa.
De pernas, papéis e tinta
Viverei sempre a escrever;
Viverei sempre a estudar;
Viverei sempre a ensinar;
Viverei na minha quinta –
A felizes irmãos – fazer!
Refiro-me à prática;
Refiro-me ao mundo;
Pois se esta aprender,
Aquele há de saber.
|
Aqui, nesses dois
escritos de Qorpo Santo, podemos ver aquilo que Elisabeth Lima fala acerca do
fato de ele não se importar com a qualidade de seu trabalho, mas sim com o fato
de escrever. Primeiro, ele fala “...Suas obras não tem erros... Sua modestia
pois --- eu lôvo”, depois “... Viverei sempre a escrever; Viverei sempre a
estudar...”
Eis que, então,
percorremos um pequeno caminho que liga a poesia com a loucura, digo pequeno
porque, se fossemos conversar sobre todas as obras e todos os autores que
tiveram como tema ou como inspiração a loucura, a (in)sanidade, a saúde mental,
etc, ficaríamos aqui durantes décadas e décadas de pesquisa e escrita, mas esse
não é meu objetivo, meu objetivo é incitar a reflexão acerca dessa relação, a
fim de desenvolver um olhar diferente à poesia e à saúde mental, além da
possibilidade do uso da arte – poesia – como forma de expressão humana e de
estímulo de potenciais. Para finalizar essa nossa gostosa discussão não poderia
deixar de colocar algum escrito meu, motivo principal pelo qual escolhi falar
sobre essa relação. Antes disso, é importante frisar que quando falamos de
“poesia & saúde mental”, não estamos apenas falando de “poesia & loucura”,
mas falamos também da poesia quanto promotora de saúde mental, quanto agente de
“colocar para fora aquilo que me aflige, que me magoa, que me felicita”, de
“colocar para fora sentimentos e fantasias”. Assim, de uma forma “terapêutica”
consigo transformar em palavras aquilo que dói em mim, tirando peso e até mesmo
evitando uma grande explosão.
Ampulheta – Camila Castro
Um
nada cabível no tudo,
Disse-me
que o ontem passou.
Por
alguns instantes, pus-me mudo,
Como
assim o ontem acabou?
Um
algo cabível numa caixa,
Disse-me
que o hoje já chegou.
Um
sorriso esboçou-se em meu rosto,
De
fato, a esperança não terminou.
Um
tudo que em nada cabe,
Disse-me
que o amanhã ainda não se criou.
Como
louco, pus-me a gritar,
Ufa!
Posso ser o que ainda não sou!
|
Seu Zé do bar da frente – Camila
Castro
Escureceu ali em frente
e, no preto do escurecido,
o mundo pleno e esquecido
foi deixado louco e doente.
Cedo a indiferença despertou,
e, cego, o seu Zé do bar da
frente,
escolheu o moço demente,
que lá em cima o representou.
Esperando luz, água e comida,
ficou sentado e esperançoso.
Logo depois, um pouco rançoso,
aquela esperança estava sumida.
O bar fechou e a luz extinguiu,
os insetos comeram o feijão,
a sujeira cobriu o chão
e o gás, por sua vez, explodiu.
Seu Zé, exausto do nada que vem
foi buscar abrigo na prefeitura,
no hospital buscou a cura,
mas só recebeu desdém.
Ele, louco e enlouquecido,
puxou o gatilho na cabeça,
Ah e, antes que eu me esqueça,
Ele mal havia vivido.
|
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Ática. 1.ed., 1882. 1977.
CASTRO, C.M. Ampulheta. 2010. Disponível em: http://castrops.blogspot.com.br/2010/04/um-nada-cabivel-no-tudo-disse-me-que-o.html
CASTRO, C.M. Seu Zé do bar da frente. 2011. Disponível em: http://castrops.blogspot.com.br/2011/09/seu-ze-do-bar-da-frente.html
LIBERATO, M. T. C. e DIMENSTEIN, M. Arte, loucura e cidade: a invenção de
novos possíveis. Psicol. Soc. [online]. 2013, vol.25, n.2, pp. 272-281. ISSN
1807-0310. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-71822013000200004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
LIMA, E. M. F. de A.; PELBART, P. P. Arte, clínica e loucura: um território
em mutação. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.3,
p.709-735, jul.-set. 2007. Disponível: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-59702007000300003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
MASINI, A.C.S. Poesia, um idioma da percepção. Casa da cultura: 2004. Disponível
em: http://www.casadacultura.org/Literatura/Poesia/O_que_e_Poesia_Artigos/Poesia_idioma_da_percepcao.html
O.M.S. Organização Mundial da Saúde. O que é Saúde Mental. 2007. Disponível
em: http://www.who.int/features/qa/62/es/index.html
PESSOA, F. Autopsicografia. In: Fernando Pessoa Poesias. L&pm
editores. 1º ed. 1997.
PESSOA, F. Esta espécie de loucura. In: Cancioneiro. Ciberfil Literatura
Digital. 2012. Disposível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2199.
SANTO, Q. Ensiqlopédia
: ou seis mezes de huma enfermidade! / Jozé Joaqim de Qampos Leão. v.1:
Poesia e Proza. Porto Alegre: Tip. Qorpo Santo, 1877. Disponível em: http://www.pucrs.br/biblioteca/obras/ler.php?obra=qsanto_vol1_poesia_e_proza&pagina=T%EDtulo.
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