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terça-feira, 8 de julho de 2014

Saúde mental e Poesia - Inspirando-se

Camila Castro, 2013.

O que é arte? O que é poesia? O que é loucura? O que saúde mental? Essas são questões inquietantes que seguem em minha mente, de forma a somar-se como complementos uns dos outros. A saúde mental como bem-estar emocional do indivíduo, a loucura como fuga do imposto e a arte e a poesia como expressão de ser e de sentimentos se mostram presentes de formas tão subentendidas que é difícil colocar em palavras essa rica e imprescindível somatória. Concordando com Carlos Alberto Coelho apud. Masini (2004) em “"Poesia, um idioma da percepção", não vejo a poesia como algo a ser aprendido, ou como um instrumento a ser usado, a poesia surge para expressar sentimentos, desejos, angústias, alegrias, tristezas... mostrando o interior, muitas vezes, não muito exposto de seus escritores, ou até mesmo a fantasia outrora escondida da sociedade.
Fernando Pessoa, ao descrever o poeta em “Autopsicografia”, traz um poeta que sente, sente o que é seu e o que não é também, sente a dor que tem e chega a sentir a dor que finge ter. Ele transforma em palavras, versos e rimas o poder da poesia, um poder que transpõe fantasia em sentir, que torna o sentimento do outro (o poeta) em seu próprio sentimento, trazendo identificação e expressão:

Autopsicografia – Fernando Pessoa
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

A Organização Mundial da Saúde, ao falar sobre Saúde Mental, a define como não apenas a ausência de transtorno mental, mas como um estado de bem-estar, no qual o indivíduo é consciente de suas próprias capacidades, pode lidar com tensões normais da vida, pode trabalhar de forma produtiva e é capaz de contribuir com sua sociedade. Refletindo, então, sob essa definição, penso que “Saúde Mental” exige quase que uma perfeição do indivíduo, ele tem que conseguir lidar com os problemas da vida sem sentir, deve ser produtivo, ter consciência do que faz, sem agir impulsivamente ou causar transtornos a outras pessoas. Quem é assim? Quem vive assim? Devo pensar, portanto, que a pessoa que foge, mesmo que por um instante, desse estado de bem-estar é louca? Afinal, o que é loucura? Quem a impõe? Os ditos sociais segregam as pessoas entre loucos e sãos, feios e bonitos, inteligentes e burros, e tantos outros antônimos que seguem procurando definir e encaixar cada qual em seu lugar.

Esta Espécie de Loucura - Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,

Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há

Mas, por que, então, definir Saúde Mental e refletir sobre a loucura, quando iniciamos uma discussão sobre poesia? Quero, com isso, fazer uma viagem na poesia enquanto arte e forma de expressão de sentimentos, e, portanto, componente intrínseco de Saúde Mental. Lima (2007), ao fazer uma perspectiva histórica acerca da relação entre a loucura e a arte, cita Foucault (1995) e relata que, “em hospitais no mundo árabe – criados por volta do século XII e destinados exclusivamente aos loucos –, a música, a dança, os espetáculos e as narrativas de contos fabulosos eram utilizados como forma de intervenção e de cura da alma”. Ainda nesse passeio histórico sobre o tema, ela apresenta o que Foucault (1995) denominou como experiência trágica da loucura, onde, ao longo do século XVII, essa “cura da alma” deu lugar a uma “consciência crítica da loucura”. Esta, então, passou para um submundo, associado à incapacidade no trabalho, impossibilidade de integração social, ou seja, passou a ser doença mental. Silenciando, assim, a loucura.
Foi nesse processo de silenciar a loucura que, segundo Foucault (1995) apud. Lima (2007), ela pôde, assim como a poesia, criar a sua própria linguagem. “O reaparecimento da loucura no domínio da linguagem precedeu qualquer interesse da
clínica pela arte, seja como aliada para a construção de uma teoria do funcionamento psíquico, seja como instrumento de procedimentos terapêuticos” (LIMA, 2007). Ainda nessa exploração histórica, a mesma autora apresenta essa relação construída entre a loucura e a arte:
Nesse alargamento da sensibilidade, a prática artística dirigiu-se para a exploração daquilo que lhe era exterior, visando a pesquisa de novas formas de fazer arte e buscando operar no limite da linguagem artística e do sistema da arte. Entre esses campos de exterioridade, a arte explorou sua vizinhança com a loucura, tanto no processo de criação do artista quanto no interesse por aquilo que alguns sujeitos, enredados nas malhas de instituições asilares, produziam. Assim, as relações entre arte, clínica e loucura passaram a se esboçar a partir da confluência entre dois deslocamentos: de um lado, buscando conquistar uma linguagem, alguns habitantes do mundo da loucura faziam um movimento quase imperceptível – já que oriundo de um espaço de exclusão e silêncio – em direção à criação artística; de outro, alguns artistas, ao se debruçarem sobre a alma humana e suas vicissitudes e buscando ampliar os limites de sua linguagem, voltavam seu olhar para o mundo da loucura.

Refletindo, assim, na arte, e aqui especificamente a poesia, como forma de dar voz à loucura, trago Liberato & Dimenstein (2013) ao utilizar “a arte como estratégia de potencialização de novos modos de existência e de lutas coletivas”, lidar com ela, como “vetor de subjetivação, dispositivo desinstitucionalizante e estratégia de resistência, buscando a criação de agenciamentos que desconstruam estigmas e possibilitem a invenção de territórios existenciais singulares e de outros caminhos em direção à alteridade”.
No uso da poesia como ferramenta de expressão é que sua relação com a saúde mental se efetiva, ao colocar em estrofes, versos e rimas sentimentos, fugas e existência. Trago, para tanto, alguns exemplos: o primeiro é o clássico Machado de Assis, que durante o século XIX tomou a loucura como tema. Este criava personagens que fugiam da normalidade, procurando explorar singularidades de expressões do dia-a-dia, configurando uma sensibilidade para tratar das questões da loucura. Não me aprofundarei aqui nas obras desse autor, deixando como missão a pesquisa e leitura das mesmas, deixo como dica o conto “O alienista”, cujo tema central é a discussão que gira “em torno da norma, de sua existência, de sua busca, da delimitação entre loucura e razão” (LIMA, 2007).

“[...] razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia; insânia e só insânia [...]”
"[...] A loucura - ele descobre, ao despedir-se de D. Evarista, que viaja ao Rio - objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente [...]"  
O Alienista – Machado de Assis.
Vemos, nesse primeiro trecho, uma definição muito precisa de loucura, onde tudo o que foge da normalidade, do equilíbrio é considerado insanidade pelo Alienista. Conseqüência dessa ampla denominação do que é a loucura foi o fato de que, no conto, quase toda a cidade foi levada à Casa Verde, lugar onde os doidos eram presos. Ampliando, assim, a loucura de ilha para continente.
Qorpo Santo (José Joaquim de Campos Leão) também é figura protagonista na relação discutida ao longo deste texto. Ele, considerado louco à sua época, usou do período de internação para uma produção literária febril e intensa. Elizabeth Lima (2007) o define como “um doido que havia escrito poesias de doido que ninguém leu”. “O que interessava para ele não era a suposta qualidade do trabalho, mas o fato mesmo de escrever”. “Conheceu o primeiro manicômio brasileiro bem como a experiência do estigma de louco e que, desse lugar, produziu uma obra que permaneceu por cem anos esquecida” – “Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade

Alguém do povo – Qorpo Santo, in: Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade
Eu não sei quem foi do povo.
--- Se arrojou a me ---afirmar;
Suas obras - - não tem erros!
Os que lhe --- parecem ser seus,
--- São satiras as leis do Imperio!
Os verdadeiros lypographicos,
--- Satiras são executores!
Sua modestia pois --- eu lôvo!
           
Que despropósito – Qorpo Santo

Façam-me barão com grandeza,
Dêem-me um conto para despesa.
De pernas, papéis e tinta
Viverei sempre a escrever;
Viverei sempre a estudar;
Viverei sempre a ensinar;
Viverei na minha quinta –
A felizes irmãos – fazer!
Refiro-me à prática;
Refiro-me ao mundo;
Pois se esta aprender,
Aquele há de saber.

Aqui, nesses dois escritos de Qorpo Santo, podemos ver aquilo que Elisabeth Lima fala acerca do fato de ele não se importar com a qualidade de seu trabalho, mas sim com o fato de escrever. Primeiro, ele fala “...Suas obras não tem erros... Sua modestia pois --- eu lôvo”, depois “... Viverei sempre a escrever; Viverei sempre a estudar...”
Eis que, então, percorremos um pequeno caminho que liga a poesia com a loucura, digo pequeno porque, se fossemos conversar sobre todas as obras e todos os autores que tiveram como tema ou como inspiração a loucura, a (in)sanidade, a saúde mental, etc, ficaríamos aqui durantes décadas e décadas de pesquisa e escrita, mas esse não é meu objetivo, meu objetivo é incitar a reflexão acerca dessa relação, a fim de desenvolver um olhar diferente à poesia e à saúde mental, além da possibilidade do uso da arte – poesia – como forma de expressão humana e de estímulo de potenciais. Para finalizar essa nossa gostosa discussão não poderia deixar de colocar algum escrito meu, motivo principal pelo qual escolhi falar sobre essa relação. Antes disso, é importante frisar que quando falamos de “poesia & saúde mental”, não estamos apenas falando de “poesia & loucura”, mas falamos também da poesia quanto promotora de saúde mental, quanto agente de “colocar para fora aquilo que me aflige, que me magoa, que me felicita”, de “colocar para fora sentimentos e fantasias”. Assim, de uma forma “terapêutica” consigo transformar em palavras aquilo que dói em mim, tirando peso e até mesmo evitando uma grande explosão.
                       
Ampulheta – Camila Castro

Um nada cabível no tudo,
Disse-me que o ontem passou.
Por alguns instantes, pus-me mudo,
Como assim o ontem acabou?
Um algo cabível numa caixa,
Disse-me que o hoje já chegou.
Um sorriso esboçou-se em meu rosto,
De fato, a esperança não terminou.

Um tudo que em nada cabe,
Disse-me que o amanhã ainda não se criou.
Como louco, pus-me a gritar,
Ufa! Posso ser o que ainda não sou!
Seu Zé do bar da frente – Camila Castro

Escureceu ali em frente
e, no preto do escurecido,
o mundo pleno e esquecido
foi deixado louco e doente.
Cedo a indiferença despertou,
e, cego, o seu Zé do bar da frente,
escolheu o moço demente,
que lá em cima o representou.

Esperando luz, água e comida,
ficou sentado e esperançoso.
Logo depois, um pouco rançoso,
aquela esperança estava sumida.

O bar fechou e a luz extinguiu,
os insetos comeram o feijão,
a sujeira cobriu o chão
e o gás, por sua vez, explodiu.

Seu Zé, exausto do nada que vem
foi buscar abrigo na prefeitura,
no hospital buscou a cura,
mas só recebeu desdém.

Ele, louco e enlouquecido,
puxou o gatilho na cabeça,
Ah e, antes que eu me esqueça,
Ele mal havia vivido.
  
REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Ática. 1.ed., 1882. 1977.
CASTRO, C.M. Seu Zé do bar da frente. 2011. Disponível em: http://castrops.blogspot.com.br/2011/09/seu-ze-do-bar-da-frente.html
LIBERATO, M. T. C. e DIMENSTEIN, M. Arte, loucura e cidade: a invenção de novos possíveis. Psicol. Soc. [online]. 2013, vol.25, n.2, pp. 272-281. ISSN 1807-0310. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-71822013000200004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
 LIMA, E. M. F. de A.; PELBART, P. P. Arte, clínica e loucura: um território em mutação. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.3, p.709-735, jul.-set. 2007. Disponível: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-59702007000300003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
MASINI, A.C.S. Poesia, um idioma da percepção. Casa da cultura: 2004. Disponível em: http://www.casadacultura.org/Literatura/Poesia/O_que_e_Poesia_Artigos/Poesia_idioma_da_percepcao.html
O.M.S. Organização Mundial da Saúde. O que é Saúde Mental. 2007. Disponível em: http://www.who.int/features/qa/62/es/index.html
PESSOA, F. Autopsicografia. In: Fernando Pessoa Poesias. L&pm editores. 1º ed. 1997.
PESSOA, F. Esta espécie de loucura. In: Cancioneiro. Ciberfil Literatura Digital. 2012. Disposível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2199.
 SANTO, Q. Ensiqlopédia : ou seis mezes de huma enfermidade! / Jozé Joaqim de Qampos Leão. v.1: Poesia e Proza. Porto Alegre: Tip. Qorpo Santo, 1877. Disponível em: http://www.pucrs.br/biblioteca/obras/ler.php?obra=qsanto_vol1_poesia_e_proza&pagina=T%EDtulo.


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